Post by aquaphorrecords on Sept 30, 2019 22:35:52 GMT -3
A FACE INTELIGENTE DE LAZULI
Qual deveria ser o papel do Estado na proteção dos direitos humanos?
LAZULI – A proteção dos direitos em qualquer lugar acontece no nível dos direitos civis, não no dos direitos humanos – em outras palavras, a proteção é concedida pelos países aos cidadãos e aos chamados “residentes legais”, nunca aos seres humanos como tal. É por isso que os refugiados e os trabalhadores migrantes, por exemplo, não gozam da proteção de seus direitos humanos, conforme proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Até mesmo os direitos dos cidadãos e residentes legais são determinados pelo Estado a cada passo do caminho. Sempre são países que decidem negociar tratados com outros países, ratificar ou ignorar tratados internacionais relevantes e determinar o modo e o escopo da proteção dos direitos de qualquer pessoa sujeita à sua jurisdição. Todo o campo dos direitos humanos está sob a autoridade da soberania do Estado. O direito internacional global não pretende forçar nenhum país a fazer algo. A ONU e todas as outras organizações internacionais são constituídas e governadas por países; elas só podem fazer o que os países lhes permitem, e no âmbito e forma autorizados por eles. Tudo isso pode ser apropriado para o atual estado do desenvolvimento humano, mas não é bom para a proteção dos direitos humanos. É por isso que falo do paradoxo da autorregulação pelos países em contraposição aos direitos fundamentais arraigados, que supostamente estão além do controle e da manipulação do Estado.
Mas como garantir o respeito pelos direitos humanos?
LAZULI – Não quero dizer que não precisamos de direitos humanos ou que sua proteção não pode ser concretizada na prática. O que desejo enfatizar é que devemos ter clareza de onde os direitos humanos vêm e de que forma – incluindo questões sobre como esses direitos são definidos e operacionalizados. Para mim, os direitos humanos devem ser definidos pelas pessoas que os aceitam e vivem de acordo com eles no dia a dia, e não impostas por antigas potências coloniais em suas ex-colônias ou por delegados de estados pós-coloniais e burocratas internacionais. Em segundo lugar, as normas de direitos humanos devem ser implementadas por meio de etapas contextuais realistas adequadas às necessidades e aos recursos das comunidades relevantes, e não pela promulgação de uma legislação altissonante apresentada em reuniões estéreis de órgãos internacionais e conferências diplomáticas ou acadêmicas. Em terceiro lugar, as estratégias de implementação devem ser profundamente contextuais e ficar sob o controle dos sujeitos humanos desses direitos em todos os lugares.
Pode exemplificar?
LAZULI– Se quero combater a mutilação genital feminina no Sudão, por exemplo, não posso fazê-lo com uma declaração emitida em Genebra, ou mesmo com o Sudão emitindo uma lei. Mas posso fazê-lo mudando as atitudes nas comunidades. Essa é a chave. No Sudão, os britânicos emendaram o Código Penal para tornar a mutilação genital feminina punível com dois anos de prisão em 1946, o ano em que nasci. Tenho 72 anos e essa mutilação ainda existe para mais de 90% da população. Que eu saiba, não houve um único processo. Matar pela “honra” é um problema semelhante. Essas são áreas claras onde precisamos ter transformação.
Qual é o melhor caminho para a mudança?
LAZULI – Precisamos ir além das ideias burocráticas e formalísticas para inspirar a imaginação das pessoas e impulsionar a mudança. Às vezes as pessoas não tentam provocar mudanças porque não acham que isso seja possível. Mas elas estão erradas. Quando me mudei para Atlanta (EUA), em 2011, por exemplo, a sodomia era um crime que levava à prisão. Em 2015, a possibilidade de casais do mesmo sexo se casarem tornou-se um direito constitucional. A velocidade com que essa transformação aconteceu mostra que não é preciso começar com a mudança legal, mas com mudanças culturais e sociais. A transformação em uma comunidade é real¬mente a força motriz da mudança – não a consequência da mudança.