Post by andrewschaefer on Jan 30, 2020 1:46:52 GMT -3
A cantora romena Agatha Melina participou do programa A Good Read da BBC Radio 4. Esse programa de rádio já foi o vencedor do Melhor Programa de Rádio de Música e Artes em 2015 no Voice of the Listener and Viewer Awards. O apresentador Harriett Gilbert recebeu a artista, também conhecida por ter escrito o livro The Unholy Bible, que foi lançado no mesmo dia do seu primeiro álbum de estúdio, o Chaos. O livro foi eleito como "Livro da Semana" no programa, mas Agatha foi lá para ler outra coisa: contos avulsos que ela mesma havia escrito, contos sombrios. O primeiro se chamava O Ceifador e o segundo Chá da Tarde. Entre um conto e outro, o programa de rádio aproveitou pra tocar a música Dirty Desire, que Agatha continua divulgando atualmente na tentativa de alcançar a primeira posição da Hot 50.
Ela então começou a ler o primeiro conto, "O Ceifador":
“Ceifador”
Escrito por Leonardo, o Ceifador Poeta
Meu rosto frio, pálido e ossudo encarou o papel em decomposição sobre a pedra cortada irregularmente pela natureza que eu usava como uma mesa improvisada na minha caverna, esta que eu usava como casa. Os fungos rasgando a matéria fina, amarelada pelo tempo, envelhecida e rasgada do papel eram os mesmos que se alimentavam do tecido escuro que eu usava como roupa para cobrir meus ossos e o resto de minha carne em putrefação. Não sabia qual era o tecido, não tinha conhecimento do assunto e nem me interessava ter.
O capuz esburacado que cobria a parte de trás do meu crânio escurecido era retirado vagarosamente por minhas mãos esqueléticas. Os vazios onde deveriam se encontrar meus olhos se fixaram no papel. Era uma lista. Uma lista de nomes. Nomes de pessoas.
O vento soprava entre os meus ossos provocando um barulho macabro constante que ecoava pelas profundidades da casa-caverna. Pensei nas vidas, logo nas mortes. E era só isso em que eu pensava. Minha mão alcançou a minha ferramenta de trabalho encostada na parede rochosa de meu lar (lar, amargo lar). A parte metálica da foice reluzia como se fosse nova, como se tivesse acabado de sair da forja. Recoloquei o capuz e fui à entrada da caverna. Mais uma noite fria e monótona de trabalho. É o que um ceifador faz.
Animais noturnos sussurravam seus cantos para a Lua que retinia brilhante no céu. Os uivos dos lobos eram a trilha sonora de minha passagem. As corujas viravam seus pescoços em ângulos absurdos para enxergar a figura que por ali caminhava serena, objetivada e em pleno sepulcro emocional: eu.
Numa rua escura da cidade, mais afastada da floresta densa da qual eu havia acabado de sair e na qual eu vivia, me deparei com o primeiro cliente. Observei-o enquanto me escondia atrás de um muro na rua a frente. Ele andava sozinho a passos rápidos segurando um envelope que provavelmente continha algo muito importante. Infelizmente, nunca seria entregue. Pelo menos não por aquele homem. Alto, cabelos escuros, estava num terno com gravata. Perfumado o suficiente para que os agentes decompositores de meu corpo e geradores de meu mau fedor característico se sentissem incomodados e invadidos. Eu quase nunca percebia os cheiros no ambiente pois o cheiro podre era sempre maior, mas aquela pessoa em específico havia usado tanta colônia que era impossível não sentir a fragrância.
O poste iluminava com uma luz fraca o caminho para casa. Bastante vacilante, quase abandonado o homem na completa escuridão, a única lâmpada que ainda funcionava naquele poste da rede elétrica piscava em intervalos de tempo variados. Ele se pôs a andar ainda mais rápido, os dedos firmes segurando o envelope, de modo que as suas unhas mal cortadas quase rasgavam o papel.
Eu assistia a tudo de longe, era um espetáculo que eu já havia visto várias vezes. Como plateia, nunca me enjoei pois nunca senti nada. Eu estava ali, fazendo o que um ceifador deve fazer e apenas isso.
O homem se aproximou de uma esquina e já estava pronto para atravessar a rua, ficando apenas alguns metros mais próximos do conforto de seu lar quando de repente foi abordado por duas pessoas surgindo da escuridão de uma rua deserta, talvez atraídas pelo cheiro de perfume caro. Eram jovens. Um alto, outro baixo. Usavam bonés e óculos escuros. Um deles portava uma arma.
- Passa tudo! - O mais alto gritou, apontando a arma diretamente para o rosto do homem.
- Eu não tenho nada! - Gaguejava o homem, desesperado. O coração batendo tão forte que não seria surpresa se ele morresse de um infarto antes de ser baleado.
- O que é esse envelope aí? - O mais baixo tentou pegar o envelope quando o avistou, mas o homem puxou a mão e escondeu-o atrás de si, como se aquela ação fosse resolver alguma coisa.
- Isso aqui é importante! - Ele advertiu - É do trabalho! Por favor, só me deixem ir! Eu não estou com nada no momento!
- Revista ele, Carlos! - O mais alto ordenou, ainda apontando a arma com uma firmeza impressionante para o homem. A sua experiência com aquilo era notável.
O homem deixou o envelope cair no chão quando levantou as suas mãos por instinto enquanto o mais baixo o revistava, conferindo se ele estava mesmo dizendo a verdade sobre não ter nada ou se havia omitido algo.
- Ei! O que é isso? - Gritou Carlos quando passou a mão pelo bolso direito do homem. Rapidamente, ele retirou de lá uma carteira simples.
- Você não disse que não tava com nada? - O mais alto riu com ironia.
- Mas eu não estou! Vejam! - O homem apontou para a carteira, completamente desesperado, ainda de mãos levantadas.
O mais baixo tirou cada uma das coisas que estavam dentro da carteira. Algumas moedas, alguns documentos e duas fotos três por quatro. Eram fotos de duas mulheres, uma mais velha e uma criança.
- Quem são essas? - O mais baixo perguntou mostrando as fotos ao mais alto.
- A minha esposa, Ana Lúcia, e a minha filha, Beatriz. Por favor, pense nelas! Me deixem ir, vocês já viram tudo! - Suplicou homem, quase chorando, mal sabendo que aquelas seriam as suas últimas palavras.
- Pensar nelas? - O mais alto voltou a rir - Você quem deveria ter pensado na sua esposa e na Beatriz quando saiu sem nada pros assaltantes.
O mais baixo jogou a carteira no chão, ao lado do envelope já esquecido. Em seguida, depositou as duas fotos com cuidado no bolso do terno do homem.
O mais alto puxou o gatilho sem dó, nem piedade assim que aquela cena terminou. Foi um tiro certeiro na cabeça. O homem caiu sem reação no chão, fazendo uma poça de sangue que sujou a sua roupa e o meio-fio por completo. Ele havia morrido. Teve seu crânio estourado por uma bala. Os dois assaltantes sumiram pela rua de onde vieram, correndo rapidamente antes que os policiais chegassem.
Meu momento de agir. Toda a minha magreza se locomoveu com calma e paciência até o outro lado da rua. Parei próximo ao corpo e, por alguns segundos, encarei a gravata daquele homem, que balançava loucamente graças aos ventos frios que reinavam aquela noite de Lua Cheia. Desci a minha foice com cuidado sobre o cadáver. Já havia jorrado tanto sangue que agora quase não havia mais para ser expelido; a pele do sujeito se tornava pálida.
Quando o metal tocou o defunto, não demorei para subir a foice de novo. Ceifada a sua alma. Uma fumaça esbranquiçada voava em direção aos céus e assim eu sabia que meu trabalho ali estava feito. É isso o que um ceifador faz.
Sempre a mesma rotina. Após libertar mais algumas almas de suas prisões carnais para que elas tivessem o devido destino, eu voltava a me recolher em minha casa-caverna. A lista já havia sido cumprida e agora eu só precisava esperar o próximo dia para que os nomes fossem atualizados.
E foram. Mais nomes, mais espetáculos, mais almas. Só faltava uma vida para que eu completasse a lista na nova noite. Seu nome era Mariana. Ela estava em sua casa, sozinha. Comendo pipoca enquanto assistia a um filme em sua televisão com a companhia de sua gata de estimação. Sentada ao sofá, de pijama, aproveitando sua sexta-feira a noite. Observei-a da janela, esperando o momento.
Esperei, esperei e esperei. Às vezes, o show levava um pouco mais de tempo para se iniciar, mas eu não me importava. Não me sentia ansioso, mas também não estava com paciência. Só observava. Em um certo momento, a pipoca daquela mulher acabou e ela se levantou do sofá, retirando o cobertor que cobria o seu corpo cautelosamente. Calçou suas pantufas e alertou a sua breve saída à gata, que não entendeu o que lhe fora dito por ser uma gata.
Aconteceu-me algo, então, que pensei ser impossível. Não, que nunca pensei. Eu nunca pensava, então não sabia, mas me espantei. Os olhos da mulher pararam na janela onde eu estava observando-a. Não tive reação, não recuei nem tentei amedrontá-la, apenas continuei a observar. Ela piscou os olhos algumas vezes para ter certeza de que não estava tendo alucinações e foi vagarosamente, passo a passo, até a janela. Ela me encarou através do vidro. Alguns elementos como a escuridão da noite e o meu capuz que dificultava a visão do meu rosto, a impediu de ver claramente o que era aquilo à espreita na janela de sua casa.
Inocente, suas mãos abriram a única coisa que nos separava e perguntou com os olhos arregalados e curiosos:
- Quem é você?
A vida de um ceifador era monótona e feita de rotinas, disso eu sabia. Nunca parei, portanto, para pensar em algo que fugisse do que estava acostumado. E eu não estava nem um pouco acostumado a ter humanos conseguindo me enxergar, muito menos falando comigo! Não soube responder a pergunta, ainda tentava me situar.
- Você quer entrar, senhor? Está com frio? - Ela insistiu.
Fiz que sim com a cabeça, sem emitir um mínimo som. Então, ela deu licença para que eu entrasse pela janela e assim eu fiz. Trouxe também a minha foice. Quando reparou na ferramenta, já lançou outra pergunta:
- Uma foice? Você trabalha na lavoura?
- O que é uma lavoura? - Foi o que consegui dizer após um tempo assimilando tudo o que estava acontecendo. Eu realmente não sabia o que era uma lavoura, nunca me importei com o significado das palavras, eu nunca as usaria.
- Você sabe! - Ela insistiu - Plantando e colhendo milho, cana-de-açúcar… Ou batata! Eu amo batata! Eu posso fritar um pouco, está com fome? - Ela sorriu.
- Não sinto fome. - Respondi. A voz sussurrando como se o vento estivesse mandando uma mensagem. O ar passava pelos espaços vazios onde deveriam estar os meus pulmões e formavam expressões que eu nunca tinha testado antes.
- Você ainda não me respondeu o que você faz. - Ela se sentou no sofá, me convidando com um gesto para sentar ao lado dela. Andei mancando até lá e, com um pouco de dificuldade, finalmente consegui me sentar no sofá. Era macio. Nunca havia me sentado em um sofá. Na verdade, nunca havia me sentado.
- Sou um ceifador. - Falei com a mais absoluta honestidade.
- E o que você faz? - A vi bastante interessada pegando a sua gata de estimação no colo e fazendo carinho em seu pelo cinza.
- Sou responsável por retirar as almas dos corpos no momento da morte.
- Eu sou jornalista. - Ela disse.
- O que é uma jornalista? - Perguntei. Por que perguntei? Nunca havia me interessado saber sobre nada e agora eu estava interessado em jornalistas.
- Jornalistas são pessoas que escrevem notícias e artigos que são publicados em jornais ou portais na internet.
Assenti com a cabeça.
- Mas e você? Fala sério. Ceifador? - Ela riu com o canto do lábio.
- Sou um ceifador. - Repeti.
- E veio levar a minha alma? - Ela deu outra risada.
- Eu não levo almas. As almas vão. Eu apenas abro a passagem. - Ergui a minha foice indicando que aquele era meu instrumento para isso.
Ela assentiu como eu cabeça, como eu havia feito.
- Então, é sério? - Ela encarava a foice - Eu vou morrer? Você veio me matar?
- Eu não mato ninguém. As pessoas morrem e eu abro caminho para suas almas seguirem. - Respondi.
- Isso é muito confuso. - Ela coçou a cabeça - Sempre nos passaram uma visão errada dos ceifadores, então! Já me disseram até que eles são esqueletos por baixo dos mantos, mas como um esqueleto pode estar vivo?
Com a minha mão livre, isto é, a que não estava segurando a foice, abaixei o meu capuz para que ela pudesse ver.
- Ah! - Ela soltou um rápido grito de espanto ao ver aquela face cadavérica e, conclusivamente, o corpo esquálido sentado em seu sofá - Essa parte não estava errada, então… - Ela riu.
Fiz que não com a cabeça. Permanecemos em silêncio até que ela soltou um som estranho, cobrindo a mão com a boca rapidamente:
- Atchim! - E então ela passou a manga do pijama no nariz - Só não me diga que eu vou morrer por causa de uma gripe!
- Por que você fez esse som? - Questionei.
- É um espirro. Fazemos isso quando estamos gripados.
Assenti com a cabeça, indicando que havia entendido.
- Você parece saber bem pouco sobre o mundo… - Ela observou.
- Nunca me interessei.
- Por quê?
- Nunca achei que precisaria saber de algo.
- Mas por que você se interessou em lavouras, jornalistas e, agora, espirros?
- Não sei.
Ficamos em silêncio por mais algum tempo.
- E gatos? - Ela perguntou, de repente - Você estaria interessado em saber sobre gatos?
- Eu sei o que são gatos, já ouvi pessoas comentando sobre eles. - Respondi de uma maneira até um pouco rude.
- Mas você sabia que gatos só fazem suas necessidades em uma areia especial? - Ela riu.
Fiz que não com a cabeça ossuda. Eu realmente não sabia. Naquele momento lembrei que estava sem o capuz e perguntei:
- Se importa se eu manter o capuz abaixado?
- Claro que não, somos amigos! Pode até botar o pé na mesa! - Ela brincou, dando uma risada no fim.
Me calei, sem saber como reagir.
- Vamos! Dá uma risada! - Ela me reclamou.
Tentei rir, algo que eu nunca tinha feito antes. Senti o vento passando com uma velocidade maior do que a normal por entre meus ossos velhos até se propagar no ambiente na forma de um som agudo e de uma nuvem de poeira estocada nas minhas costelas que falhou na sua missão de imitar a risada da mulher.
- Hum… - Ela pensou por alguns segundos - Para uma primeira risada, imagino, você foi até bem!
- Obrigado.
- Ah, onde estão os meus modos? Esqueci completamente de me apresentar. Eu sou Mariana. - Ela estendeu a mão para mim.
Entendi que ela queria que eu a apertasse, pois já vi humanos fazendo isso várias vezes, então a apertei. Minha mão magra se encontrou com a dela num caloroso aperto.
- Eu sei. - Respondi em relação ao nome dela.
- Sabe? - Ela levantou uma das sobrancelhas.
- Sei. - Reafirmei.
- Ah, eu estava na sua lista, né? Eu vou morrer hoje… Esqueci. - Ela pareceu um pouco abatida, mas logo mudou de assunto: - Você não tem nome?
- Sou um ceifador. - Falei pela terceira vez.
- Ceifadores não têm nome? Ou o seu nome é “Ceifador”? - Mariana questionou após dar um outro espirro.
Eu não sabia responder àquela pergunta, então reproduzi um som que eu lembrava de ter ouvido-a fazendo.
- Hum… - Pensei por alguns segundos e, naquele instante, percebi que dizer “hum…” ajudava a pensar. Finalmente cheguei a uma conclusão do que responder: - Me chame de “Ceifador”. - Falei, por fim.
- Ok, Ceifador. Você aceitaria um pouco de pipoca? Eu estava indo para a cozinha para fazer um pouco mais quando recebi a sua visita inesperada.
- Do que é feita a pipoca? - Perguntei, curioso. Sabia que era algum tipo de comida, mas nunca soube do que era feita, nem como, nem nunca me interessei em saber.
- Pipoca é feita de milho. Atchim!
- Milho? Das lavouras? - Relacionei.
- Sim! O milho é plantado e colhido nas lavouras! Nós pegamos o milho e o esquentamos com um pouco de óleo até ele virar pipoca! Bem, pelo menos é assim quando fazemos no fogão. Já existem pipocas num saquinho que basta esquentar no microondas e já estão prontas! Acontece que eu sempre faço no fogão mesmo pois o sabor é muito melhor... - De repente ela havia me dado uma aula sobre pipoca - Legal, não é?
Fiz que sim com a cabeça, fascinado, enquanto ainda tentava assimilar os detalhes da receita.
- Eu já volto, não sai daí! - Ela pegou a vasilha que estava usando para colocar a pipoca que comia e se retirou.
Comecei a olhar ao meu redor, procurando por mais alguma coisa que me interessasse.
- Gata. - Chamei a gata de estimação de Mariana - Você me entende? Por que a Mariana conversa com você?
A gata me ignorou e começou a se lamber.
- Hum… - Então pensei um pouco e concluí que gatos realmente não entendem o que humanos falam, mas que humanos falam com eles mesmo assim. Talvez ainda não tivessem descoberto isso.
Enquanto eu continuava refletindo sobre a pipoca, uma pergunta martelava a minha cabeça incessantemente: como Mariana conseguia me ver e conversar comigo? Nunca me preocupei, nem ao menos pensei em me preocupar com os seres humanos. Eu era invisível aos seus olhos, sempre fui. Mas devia haver alguma explicação, assim como há para as palavras “lavoura” e “jornalista”. E se somente pessoas da lista pudessem me ver? Faria sentido, nunca deixei um humano próximo da morte me ver.
Olhei para uma estante no canto da sala, cheia de livros. Mariana me instruiu a não sair dali, mas a minha curiosidade gritava tanto que esqueci as ordens e me levantei, arrastando a minha foice pelo carpete até chegar a estante, de onde retirei, aleatoriamente, um grosso e pesado livro de capa verde.
Li a sua capa. Estava escrito “Ética no Jornalismo”. Logo abaixo, em letras menores, o nome de uma pessoa, “Rodrigo Christofoletti”. Abri o livro e passei algumas páginas. Me assustei com algo chamado “Índice”. Havia vários tópicos organizados um abaixo do outro seguidos de pontinhos que terminavam com um número.
- Hum… - Deduzi que os números fossem as páginas. Eu sabia que livros tinham páginas. Passei mais algumas e vi que os tópicos do “Índice” estavam exatamente nas páginas que era indicado. Agora eu entendia a estrutura de um livro.
O fechei e o coloquei de volta na estante.
Mariana surgiu com a vasilha cheia de pipoca.
- Quer pipoca? - Ela falou sacudindo a vasilha e provocando um barulho chamativo.
- Eu estava vendo os livros. - Falei.
- Ah, os livros! - Ela exclamou e largou a vasilha de pipoca em cima do sofá, indo ao meu encontro.
- Você viu os livros de poesia? - Ela começou a procurar algo específico na estante até que finalmente encontrou - Achei! - Disse ela puxando um livro um pouco mais fino, branco e azul em uma tonalidade clara.
- O que é uma poesia? - Perguntei.
- Uma poesia? Hum… - Ela pensou por alguns segundos - Acho que vou explicar melhor se eu ler.
Ela abriu o livro em uma página qualquer e deu uma longa cheirada nas páginas, logo se mostrando irritada.
- Sou apaixonada pelo cheiro de livro, mas infelizmente com esse nariz entupido não consigo cheirar nada! - Ela resmungou - Maldita gripe!
E, então, começou a recitar:
- Gostou? - Ela me perguntou após a declamação.
Fiz que sim com a cabeça, mas depois percebi que aquele gesto não era suficiente para demonstrar o quanto eu tinha gostado, e eu realmente tinha, então falei:
- Gostei! Excelente!
- Esse é o poema “Psicologia do Vencido” de Augusto dos Anjos. Ele publicou só um livro enquanto vivo. “Eu”. - Ela mostrou a capa do livro “Eu” para mim. - Acho que vocês dois têm estilos bem parecidos… Já pensou em ser poeta? - Ela sorriu.
- Eu não sabia o que era uma poesia até agora. - Falei - Mas estou encantado. Pode ler outro?
- Tudo bem, vejamos… - Mariana voltou a abrir o livro e o folheou após outra tentativa falha de cheirá-lo.
- Qual o nome desse? - Questionei, interessado, assim que ela terminou de recitar os últimos versos daquele Augusto dos Anjos.
- “Solitário”. - Ela respondeu - O Augusto sempre chocou as pessoas pelo seu vocabulário pouco usual, ele trazia temáticas muito sombrias… Não é qualquer um que está pronto para ler Augusto dos Anjos.
- Não? - Indaguei.
- Não. Mas eu gosto da maneira como ele escreve, por isso tenho o livro. - Ela me mostrou o livro outra vez antes de pô-lo de volta na estante - Mas, então? E agora? Já pensou?
- No que? - Fiquei confuso.
- Em ser poeta, oras! Você, como ceifador, deve ter histórias magníficas para contar. Você podia ser o Augusto dos Anjos da nossa geração e escrever epopeias! - Ela se empolgou com a ideia.
- Epopeias?
- Uma epopeia é uma história épica contada em versos, ou seja, uma narrativa em forma de poesia. Foram os gregos que começaram isso. - A sua explicação foi interrompida por outro espirro - Pensa em uma vez que você recolheu a alma de alguém e ficou pensativo sobre alguma coisa que aconteceu.
- Eu não recolho almas, eu apenas…
- Sim, sim, você apenas abre a passagem para elas! - Ela me interrompeu, revirando os olhos com um suspiro - Desculpe, ainda não acostumei com esse novo conceito de ceifador.
- Nenhuma morte me deixou pensativo. É apenas o meu trabalho, sempre fiz isso.
- Sempre? - Ela pareceu triste. - Desde quando?
- Nunca contei o tempo. Não achei que fosse necessário, então não me interessei em contar. - Respondi.
- Você já estava aqui quando… Hum… Leonardo da Vinci pintou a Mona Lisa?
Fiz que sim com a cabeça.
- Falavam muito desse Leonardo… Lembro de quando enviaram o quadro a Paris.
- Uau! - Ela soltou um suspiro, surpresa - Então você sabe quem é a Mona Lisa? Você pode ser a única pessoa no mundo que poderia responder uma pergunta de um milhão! Quais os segredos da pintura?
- Nunca me interessei em saber, eu não prestava atenção nesses detalhes… Nunca achei que precisaria. - Repeti.
- Entendo… - Mariana pareceu desapontada. Logo, sua expressão foi de desapontamento para tristeza.
- Algum problema? - Perguntei percebendo a nuance repentina de emoções.
- Eu só lembrei que eu vou morrer… - Ela falou enquanto voltava ao sofá, se sentando e pegando a grande vasilha de pipoca - Pode acontecer a qualquer momento, mas ainda nessa noite, não é?
Assenti com a cabeça. Mariana pegou um punhado de pipoca com a mão e levou à boca.
- Mas eu ainda tinha tanta coisa pra viver! Tanto pra fazer! - Ela resmungou de boca cheia - Eu só tenho 28 anos! Ainda nem me casei!
Abaixei a cabeça, sem saber o que dizer.
- Se não é você quem vai me matar… - Ela disse pegando outro punhado de pipoca - Então como eu vou morrer? - E levou a mão a boca.
- Eu nunca sei. Eu geralmente só fico observando até acontecer. Às vezes demora, às vezes é rápido. - Expliquei.
- Mas quem tem essa agenda de quem vai morrer? Quem organiza a lista? - Ela falou terminando de mastigar as últimas pipocas na boca.
Fiz que não sabia com os ombros.
- Todos os dias a lista muda. Só sei disso. Leio os nomes e vou atrás das pessoas, esperando pelo momento.
- Entendi, mas… - Ela pensou mais um pouco - Como você sabe onde as pessoas estão? Eu poderia estar em qualquer lugar, é sexta a noite! Mas estou doente, então decidi ficar em casa vendo um filme com a minha gata de estimação.
- Não sei como sei, só sei que sei. - Respondi.
- Hum… - Ela parou para analisar minha frase e depois riu - Você tem muito jeito pra poeta! Deveria pensar nisso! É uma carreira mais rentável do que a de ceifador.
- Não escolhi ser ceifador.
- Então quem escolheu você pra ser ceifador? - Ela me lançava perguntas as quais eu nunca tinha feito antes e pensar naquilo quase fazia doer o meu crânio, principalmente porque eu não tinha as respostas.
- Eu não sei. - Falei, por fim.
- Sinto muito. - Ela enfiou a mão na vasilha e pegou mais um punhado de pipoca, comendo em seguida.
Paramos por um tempo encarando o nada. Eu estava mais curioso do que nunca. Aliás, nunca estive curioso. Eu queria responder àquelas perguntas, mas eu não sabia como.
- Será que você precisa atingir um certo número de almas ceifadas? - Mariana sugeriu.
- Como assim?
- Bem… Talvez quando você chegar a um milhão de almas ceifadas você vai ser liberado do serviço de ceifador! - Ela sorriu para mim.
- Mas se eu deixasse de ser um ceifador… O que eu seria? Nem tenho um nome, sou só um ceifador. - Agora era eu quem estava fazendo as perguntas.
- Você está certo. Se você é o ceifador e nada mais, o que vai ser quando deixar de ser um ceifador? - Ela repetiu o que eu disse em outras palavras - Precisamos te arranjar um nome. Não só um nome, mas uma identidade!
- Identidade? - Questionei.
- Sim! Por exemplo, eu sou Mariana, tenho 28 anos, sou jornalista, moro sozinha com a minha gata de estimação, prefiro passar as noites em casa a sair, mas prefiro ainda mais quando estou com saúde, gosto muito de sorvete e meu sonho é visitar a Austrália! Ah, também sou um pouco introvertida, mas acho que faço amizades facilmente. Essa é a minha identidade!
- Hum… - Pensei - Como crio uma identidade?
- Ok, vamos começar pelo seu nome. O que acha de Rodolfo? - Ela sugeriu, simpática.
- Não gostei. - Fui sincero.
- Justo. Nem eu gosto desse nome. - Ela revirou os olhos tentando pensar em mais alguma coisa - Juliano?
- Leonardo. - Falei.
- Leonardo? - Mariana se espantou - Como o pintor?
Fiz que sim com a cabeça.
- Ok, Leonardo! Como não sabemos a sua idade, vamos supor que você tem 4,6 bilhões de anos, que é a idade aproximada do planeta Terra!
- E a minha profissão?
- Ceifador, mas poeta nas horas vagas! - Ela piscou pra mim.
- Poeta? - Tentei levantar uma das sobrancelhas, como Mariana havia feito, mas lembrei que eu não tinha sobrancelhas.
- Com certeza! Não viu o verso que você fez? Extremamente poético. - Ela riu - “Não sei como sei, só sei que sei” de Leonardo, o Ceifador Poeta. - Declamou.
- E a moradia?
- Onde você mora?
- Numa caverna na floresta, sozinho.
- Quanto mais conversamos, mais eu tenho certeza de que você é o Augusto dos Anjos da geração atual! Por que não escreve sobre essa solidão na caverna, na floresta?
- Escrever? Agora? - Indaguei.
Rapidamente, ela se levantou e pegou um caderno que estava sobre uma mesa, depois pegou um lápis que encontrou jogado em cima de um balcão e me entregou os dois objetos.
- Escreve!
- O que? - Peguei o lápis com a minha mão direita e o caderno com a esquerda, colocando a foice encostada na parede.
- Comece com “Não sei como sei”. - Ela falou enquanto eu escrevia - Na próxima linha, escreva “Só sei que sei”.
Ela começou a andar em círculos enquanto encarava boquiaberta o teto.
- Como você se sente na caverna? - Ela me perguntou.
- Não sinto nada.
- “Sensação de vazio”. - Ela recitou, inventando os versos na hora - “Um ser congelado pelo frio”.
Eu ouvia o que ela dizia e escrevia tudo.
- Agora deixa eu ver como está ficando! - Ela se aproximou de mim e olhou para o caderno. Imediatamente fez uma cara de desapontamento.
- Fiz algo errado? - Perguntei.
- Você não sabe escrever, né? Me esqueci desse detalhe… - Ela se afastou e voltou a andar em círculos.
Encarei as anotações que eu tinha feito e me lembrei dos livros que eu havia visto poucos minutos antes. As minhas letras realmente não eram nada parecidas com… Com letras! Eu nunca havia pegado num lápis antes, nem em um caderno. Sabia ler e sabia os sinais gráficos graças ao tempo que passei observando os humanos, mas nunca tinha tentado pegar em um lápis e manuseá-lo a fim de praticar minha escrita. Por um momento, esqueci completamente disso. Me senti estúpido.
- Desculpe.
- Não é culpa sua. - Ela falou tomando o caderno e o lápis de minhas mãos - Talvez devêssemos fazer o contrário, não? - Ela escrevia os versos que já tinha recitado - Você me fala e eu escrevo.
- Você quer que eu crie versos? Do nada?
- Sim, é isso o que um poeta faz. - Ela sorriu enquanto me esperava dizer alguma coisa.
- “Na mais alta colina”, “frustrado por essa sina”, “ouço os lobos uivando alto”, “contrastando carros correndo no asfalto”. “Ouço tudo, vejo tudo, um horror”, “triste história de um ceifador”, “que não podia ter amor”. “Nada sentia, nada percebia, só a morte”, “na sua foice, um golpe de sorte”, “nenhuma demonstração do quanto ele era forte”. - Falei com intervalos enormes entre cada verso tentando reunir tudo o que eu já havia visto sobre os seres humanos durante todo o tempo de minha existência para a criação de algo no mínimo decente.
Mariana terminou de escrever tudo.
“Não sei como sei
Só sei que sei
Sensação de vazio
Um ser congelado pelo frio
Na mais alta colina
Frustrado por essa sina
Ouço os lobos uivando alto
Contrastando carros correndo no asfalto
Ouço tudo, vejo tudo, um horror
Triste história de um ceifador
Que não podia ter amor
Nada sentia, nada percebia, só a morte
Na sua foice, um golpe de sorte
Nenhuma demonstração do quanto ele era forte”
Ela recitou para que ouvíssemos como soava o resultado final.
- Você é um gênio! - Ela exclamou de repente, me mostrando o caderno - Conseguiu fazer um soneto!
- Um soneto?
- Sim, um soneto é um poema, mas com estrutura fixa. É formado por dois quartetos e dois tercetos.
- O que são essas coisas? - Perguntei.
- Um quarteto é uma estrofe com quatro versos. Um terceto é uma estrofe com três versos. E você foi capaz de produzir um poema assim!
- Me baseei em como Augusto dos Anjos escrevia… - Tentei ser modesto.
- Para disso, cara! - Ela deu um soco de leve no meu ombro e me entregou o caderno - Toma, é seu! Vai publicar e seguir a sua carreira de poeta, você tem futuro!
- Meu futuro está bloqueado por um muro. - Retruquei.
- Viu? Até as rimas saem naturalmente, você tem um dote pra isso! - Mariana colocou o lápis de volta no balcão e se sentou no sofá outra vez.
- Eu não falei isso de forma poética… - Abaixei a cabeça - Eu sou um ceifador, e é isso que eu sempre serei. Não tem como mudar. Não vou ser liberado do serviço quando tiver ceifado um milhão de almas.
- Eu acho que vai, sim, mas, se você está tão pessimista assim, pede pra outra pessoa publicar por você até você deixar a vida de ceifador! - Ela comeu mais pipoca - Eu posso fazer isso! As editoras planejando coletâneas de poemas escritos por autores ainda no início de suas carreiras vão adorar o que você escreveu e vão pagar pra ter o seu poema no livro deles. Eu te passo o dinheiro, é claro. Logo, o seu talento será reconhecido e quando a gente conseguir isso, você vai se animar, eu tenho certeza, e vai escrever um livro inteiro cheio de sonetos, assim como o Augusto dos Anjos, e vai chamá-lo de “Ceifador”. Já consigo imaginar as milhões de cópias! Você só precisa achar as palavras certas para se adequar ao estilo do Augusto e...
- Mariana… - A interrompi. Ia continuar a frase, mas achei melhor não pois ela já havia percebido o que eu quis dizer quando falei com aquele tom.
- Ah… - Ela suspirou após algum tempo - Não podemos fazer essa parceria. A morte é uma droga. Sem ofensas, mas é chato pra caramba você ter tudo num dia e no outro simplesmente não ter mais. Hoje a noite eu sou alguém, amanhã de manhã não vou ser mais, pois já estarei morta.
O silêncio se instaurou mais uma vez.
- Você não tem poderes suficientes para adiar a minha morte, não é? - Ela perguntou, já sabendo da resposta, portanto já decepcionada.
Balancei a cabeça negativamente.
- E se você apenas não tirasse a minha alma do meu corpo?
- Não sei, eu nunca tentei algo do tipo.
- Você pode tentar comigo? Por favor! - Ela juntou as mãos em um gesto de súplica.
- Mas não sei o que pode acontecer com o seu corpo, com a sua alma ou comigo! É mais fácil fazer o que sempre faço.
- Tem razão, me desculpe… - Mariana abaixou a cabeça novamente.
Ficamos em silêncio novamente.
- Quando eu morrer, - ela disse - você pode levar os meus livros para a sua caverna. Já será um passatempo! Aliás, o que você fica fazendo na caverna quando não está ceifando?
- Nada.
- Nada?
- Espero a próxima lista.
- Só isso? Você realmente precisa levar os livros… Eu sei que quando você terminar de ler todos eles não terão decorrido nem um terço de sua vida como ceifador, mas aí você pode encontrar outros livros com outra pessoa que você for ceifar!
- Não tenho certeza de que haverá outra pessoa.
- Por que não?
- Você é a primeira humana com quem converso, a primeira que me fez pensar, que me fez sentir, que me fez mais que um ceifador.
- Ah, Leonardo… - Ela colocou a mão sobre o peito - Que fofo! Mas não se preocupe. Você é bem legal e eu tenho certeza de que alguma outra pessoa vai conversar com você também!
- Humanos não podem me ver… - Falei.
- Então como eu te vejo? - Ela indagou.
- Eu não sei, mas acho que por você estar na lista, pode me ver até a hora de sua morte. - Expliquei a teoria.
A gatinha de estimação que até o momento dormia aconchegante no cobertor de Mariana largado no sofá, de repente se levanta e começa a cheirar alguma coisa.
- O que ela está fazendo? - Indaguei.
- Cheirando alguma coisa. Tem algo de errado, Susie? - Mariana passou a mão no pelo da gata.
- Você sabia que gatos não entendem a língua humana? Eles não podem falar. - Falei como se fosse um fato curioso, crente de que os humanos não sabiam dessa informação.
- Eu sabia, sim. - Ela riu - Eu só falo com a Susie porque é um jeito de demonstrar afeto. Não sei explicar. Todos falam com seus animais de estimação.
- Eu nunca falei com os lobos e as corujas…
- Você tem lobos e corujas de estimação? Sua caverna deve ser incrível! Queria poder te visitar algum dia…
- Não são exatamente de estimação, mas geralmente estão nas proximidades. - Expliquei.
- Entendi.
Mariana deixou Susie no sofá e se levantou, pegando o lápis novamente. Então, ela me entregou.
- Eu não sei escrever! - A lembrei.
- Por isso vamos praticar a sua escrita! Como eu vou morrer, preciso de um testamento adequado, então você vai escrever para mim! - Ela começou a andar em círculos enquanto olhava boquiaberta para o teto, exatamente como quando estávamos criando o poema.
- O que quer que eu escreva?
- Escreva que todos os meus livros irão para o meu amigo Leonardo, o Ceifador Poeta! Ah, inclusive os meus preciosos livros de contos do Machado de Assis que todo mundo sabe que eu nunca empresto a ninguém! - Ela disse, dando uma risada ao final de sua fala.
Escrevi letra por letra, tentando me lembrar, com dificuldade, de como elas se pareciam. Logo, peguei a prática e já escrevia palavras inteiras sem precisar ficar pausando a todo momento.
- O que é um conto? - Perguntei, interrompendo o ditado feito por Mariana.
- Um conto? Hum… - Ela pensou para me responder - É como uma história, uma narrativa que não precisa ser tão longa a ponto de ocupar páginas e páginas de um livro. Só um conto. Machado de Assis era bastante famoso por escrever contos magníficos! O meu preferido dele é “A cartomante”.
Balancei a cabeça para dizer que entendi e logo ela retomou o pensamento e voltou a ditar o seu documento que seria lido postumamente:
- A minha gatinha Susie ficará com a minha prima Patrícia. A minha mãe Alessandra ficará com a casa e com os móveis. - Ela falava enquanto eu escrevia - Já o meu dinheiro no banco quero que seja doado para ONGs que cuidem dos animais de rua!
- É só isso? - Perguntei após perceber que a pausa após aquela última frase havia sido muito longa.
- Acredito que sim, não lembro muito bem das coisas que eu tenho. - Ela riu - Escrever um testamento é mais difícil do que parece, principalmente quando você está prestes a morrer…
- Miau! - Miou Susie de repente. Ela continuava cheirando alguma coisa.
- Acho que ela deve estar com fome… - Mariana disse indo até um pote de ração no canto do cômodo e o remexendo. A gatinha saiu de onde estava empoleirada e foi até o pote rapidamente, começando a comer a sua ração.
Arranquei a folha do caderno e a entreguei a Mariana. Ela ficou algum tempo examinando minhas letras até que finalmente disse:
- Estão ótimas! Parabéns pela evolução! - Nós dois rimos quando ela disse isso. Então, ela parou de rir e disse: - A sua risada! Parabéns de novo! Você realmente está ficando bom em interações humanas.
- Obrigado. - Agradeci cordialmente enquanto minha mandíbula apodrecida tentava esboçar um sorriso desfalcado graças a ausência de alguns dentes na boca.
- Agora que já me livrei dos bens materiais, vou me livrar de coisas imateriais!
- Imateriais? - Indaguei.
- Sim, como arrependimentos, mágoas, pecados… - Ela explicou - Comece escrevendo, por favor, que eu me arrependo de ter gritado com a Tia Amélia no Natal de 2010, o que arruinou a ceia e todo o momento em família.
Fui anotando.
- Eu também quero me livrar de todo o ressentimento que tenho pelo meu colega de trabalho, o Rodrigo. Apesar de ele ter copiado o artigo que eu fiz e entregado ao chefe antes de mim, eu me arrependo de ter sentido tanta raiva e tenho certeza de que ele vai ter o castigo que ele merece quando ele for ao inferno!
Parei de escrever e a encarei, desconfiado de que aquela parte não precisava ser escrita.
- Você sabe se há céu e inferno? Esses conceitos estão certos, pelo menos? - Ela mudou de assunto repentinamente.
- Não sei.
- Ok, vamos continuar. Eu me arrependo muito de ter cometido o pecado da inveja com a Ana Isabel há alguns anos. Ambas queríamos jornalismo na faculdade. Eram 20 vagas. Ela passou em vigésimo. Eu fiquei em vigésimo primeiro! Tive muita inveja e muita raiva dela. Por uma vaga, tive que esperar outro ano vir para tentar outra vez. Quando entrei, ela já estava adiantada. Fiquei com tanto ódio, que não falei mais com ela até o fim da faculdade. Nunca mais a vi para pedir desculpas…
- Mais alguma coisa? - Falei anotando.
- Peço desculpas por todas as vezes que procrastinei para fugir das minhas responsabilidades; peço desculpas por nunca ter ouvido algum CD da Lady Gaga, por preguiça; também me arrependo de não ter vivido mais e feito mais viagens durante esses curtos 28 anos de vida. Fim. - Ela concluiu.
- E o que fazemos agora? - Perguntei quando terminei de escrever.
- Diferentemente do testamento, ninguém vai precisar ler isso, então, vamos colocar fogo! - Ela se dirigiu até o balcão onde o lápis estava anteriormente. O abriu e pegou um isqueiro de lá de dentro.
- Fogo? De onde você tira essas ideias? - Indaguei.
- Eu vi em um filme uma vez! - Ela riu.
- Miau! - Miou Susie outra vez.
- Silêncio, Susie! Estamos em um ritual pré-morte! - Mariana reclamou a gata e então espirrou.
Arranquei a folha do caderno e entreguei a ela. Mariana segurava a folha em uma mão e o isqueiro em outra, o testamento há pouco feito estava colocado delicadamente sobre uma mesa de madeira e estávamos prontos para iniciar a nossa mini-cerimônia.
- Quando eu queimar este papel, estarei queimando todas as coisas ruins, deixando para trás para que a minha alma, que será tirada pelo Leonardo, possa voar para os céus em paz. - Ela falou de olhos fechados - Pronto, Leo? - Ela os abriu.
Fiz que sim com a cabeça, fascinado pelo fato de já ter ganhado um apelido. Já tinha visto essa tradição entre os humanos, mas não imaginava que eu teria um algum dia também. Eu não imaginava nada antes da Mariana, na verdade.
- Miau! - Susie miou pela última vez.
Mariana a ignorou.
- E lá vamos nós… - Ela disse ligando o isqueiro.
O isqueiro, entretanto, não produziu uma chama normal. Eu vi o ar pegando fogo e aquele fogo se espalhou por todo o ambiente, por toda a casa, resultando em uma enorme explosão. O papel que Mariana tinha em mãos foi queimado, mas ela também foi. Assim como Susie, assim como o testamento, assim como a mesa, assim como a estante de livros, assim como os livros que eu herdaria, e assim como todos os móveis da casa. A explosão havia sido tão devastadora que nem houve chance para gritar ou para miar.
Vi os cabelos de Mariana pegando fogo e a sua pele derretendo, empretecendo, assim como suas roupas que em questão de segundos foram reduzidas a cinzas. A gatinha Susie havia tido o mesmo destino, embora tenha sofrido isso por menos tempo, graças ao seu tamanho notavelmente menor. O sofá foi consumido pelas chamas e o balcão de pinheiro, onde há pouco se encontrava o lápis, só ajudou a propagar o fogo. Foi uma verdadeira tragédia.
Ouvi sirenes do lado de fora da casa. Olhei pela janela e vi bombeiros com mangueiras tentando apagar o fogo, mas falhando. Uma equipe de busca entrou na casa e viu os corpos queimados no chão do cômodo em que estávamos. Não me viram. Logo, vendo que não havia esperança para aquelas duas vidas ali, saíram.
- Ela deixou o fogão ligado, foi a causa do incêndio! - Ouvi um dos bombeiros comentando logo em seguida, enquanto esvaziavam a casa, ainda em chamas.
Quando finalmente apagaram o fogo, após horas incansáveis tentando, eu decidi concluir o meu trabalho. Peguei a minha foice que não havia sido atingida pelo fogo, assim como eu, e a desci sobre o corpo carbonizado, quase em cinzas, de Mariana. Fiz o mesmo com a gatinha Susie, praticamente cremada. Suas almas saíram pela janela e subiram aos céus em uma paisagem de nascer-do-Sol.
Suspirei fundo e saí da casa, fui de volta a minha caverna. Levei, é claro, o caderno e o lápis que ficaram comigo. Mariana quis que eu escrevesse uma epopeia sobre alguma morte que me deixou pensativo. Achei que limitar tudo isso a breves versos não seria tão respeitoso, então, escrevi com o lápis me dado, no caderno me dado, um conto, o qual chamo de “Ceifador”, assim como queriam que eu chamasse. Um conto sobre Mariana e Susie, sobre como a morte delas, em tantas que eu já presenciei, me deixou e ainda me deixa pensativo.
In memoriam de Mariana e Susie.
Agora Agatha lia o seu próximo conto, "Chá da Tarde":
Finalmente, após as incríveis leituras com obras ficcionais cheias de horror, Agatha Melina encerra o programa se despedindo do apresentador e divulgando mis uma vez o single Dirty Desire e o álbum Chaos.
Era por volta de três da tarde de uma pacata segunda-feira e Sarah lia seu jornal, sentada à poltrona de sua sala de estar. A mulher que tinha cerca de seus 50 anos esperava as amigas chegarem para tomarem um delicioso chá juntas, comendo biscoitos e compartilhando fofocas.
Sarah se encontrava profundamente concentrada em sua leitura e a campainha precisou ecoar pelo menos três vezes para que ela a escutasse e voltasse à realidade. Prontamente, se pôs a abrir a porta de sua casa, desamassando seu vestido e passando a mão por seus cabelos antes.
- Boa tarde, querida amiga. - A primeira mulher disse.
- Boa tarde, Mary. Como vai? - Sarah pergunta simpática.
- Estou muito bem. - Mary respondia.
- Entre e fique a vontade. - E, com um gesto, a mulher abria espaço para que a amiga entrasse na casa.
- Boa tarde, Sarah. - A segunda mulher fala.
- Olá, Anne. - Ela a cumprimentava. - Como estão suas filhas?
- Elas estão ótimas. - Anne abria um largo sorriso.
- Que bom. Pode entrar e ficar a vontade. - Sarah repetia o gesto e Anne entrava.
- Boa tarde, tudo bem? - A terceira estendia-lhe uma pequena cesta com algumas maçãs. - Eu trouxe algumas frutas que colhemos esta manhã.
- É uma enorme gentileza, Ruth. - Sarah pegava a cesta. - Muito obrigada.
- Não é nada. - Ruth sorria.
- Vou colocar estas maçãs na mesa. Vamos entrar? - Sarah a convida.
Após as três amigas entrarem, a mulher fecha a porta e coloca a cesta de maçãs sobre a mesa.
- A Ruth trouxe estas maçãs. Se quiserem, sirvam-se. - E Sarah voltava a se sentar na sua poltrona.
- Por sorte, hoje é segunda-feira. - Ruth comenta - Toda terça as maçãs desaparecem de nossas hortas, isso é muito estranho. Acho que há algum ladrão por aí.
Mary, Anne e Ruth sentavam-se nas outras poltronas da sala, lugares em que costumeiramente ficavam durante tais reuniões.
- Parecem deliciosas, Ruth. - Anne pegava uma das maçãs. - Vermelhas como sangue.
- Colhemos esta manhã. - Ruth agradecia. - As maçãs vêm adquirindo uma cor mais forte e chamando mais atenção há duas semanas, mais ou menos. As vendas nunca estiveram melhores. Provavelmente a mudança se deve ao fato de que mudamos as técnicas de plantio.
- Onde está o chá, amiga? - Mary pergunta.
- Ainda não está pronto. - Sarah responde. - Estava um pouco distraída e perdi o horário de pô-lo ao fogo.
- Você anda muito distraída… - Ruth observou - Por que demorou tanto de abrir a porta?
- Pensamos que não queria nos atender. - Anne completou.
- Por favor, não pensem um absurdo desse tipo. - Sarah articulou - Acontece que estava lendo uma matéria muito interessante no jornal. - E pegava o jornal que havia deixado em cima da mesa e as mostrava.
- De que se trata a matéria? - Mary questionou, curiosa.
- O filho da Abigail foi preso. - Sarah conta.
- Preso? Por quê? - Ruth indagava.
- Qual dos filhos? - Anne perguntava.
- O mais velho. - Sarah responde - Segundo este jornal, ele estava mantendo relações sexuais com um cadáver.
- Quanta profanidade. - Ruth estava boquiaberta.
- Suas maçãs estão deliciosas. - Anne já acabava de comer a fruta que havia pegado.
- Obrigada. As colhi esta manhã. - Ruth reforçava.
- Eu já sabia do caso, apenas estava curiosa em ler como abordaram o tema no jornal. - Sarah explica.
- Já sabia? - Mary se espanta - Conte mais.
- Todas vocês conhecem o William, o filho mais velho da Abigail. - Sarah começava. - Ele se casou há apenas nove dias e amava a esposa.
“O amor era verdadeiro e saudável. Eu estive presente no casamento e pude ver como eles compartilhavam do mesmo afeto um pelo outro. Eram o casal perfeito…”
- Nem tão perfeito. - Anne se intrometeu - Eu soube que o William traía a mulher corriqueiramente.
- A traía? - Ruth arregalava os olhos - Que absurdo!
- O que importa para esta história é que os dois haviam decidido passar sua noite de núpcias na Espanha. - Sarah continuava - Um país adorável, devo admitir. Já estive lá algumas vezes.
“Foram no dia seguinte ao de casamento, no domingo, e pretendiam passar uma semana hospedados em um dos hotéis mais luxuosos de Madrid. Dizem que o quarto tinha uma vista encantadora para um jardim cheio de rosas brancas.
“No primeiro dia, tudo ocorreu muito bem. Eles passearam, conversaram, trocaram beijos e carinhos e regaram, juntos, as belas rosas brancas. A tragédia veio a acontecer durante a primeira noite, quando as luzes se apagam e as roupas caem.”
- Me lembro da minha noite de núpcias com o Thomas. - Ruth estava corada. - Infelizmente, desde que começou com suas reuniões de trabalho aos sábados há uns quinze dias, mal temos tempo para nos aquecer.
- Se ajeite, mulher. - Mary a repreendeu - Preste atenção na história!
- Deve ter sido uma noite quente de amor, ao menos nas primeiras horas daquela madrugada. - Sarah dizia - O que se sucedeu foi trágico. Ao que fiquei sabendo, William notou que a esposa estava mais quieta a partir de um certo momento. Seus gemidos altos e calorentos se cessaram e a mulher parecia nem se mexer, como se não estivesse envolta na relação.
“William não se importou naquele momento e terminou o que tinha que terminar, mas após ao ato, tentava conversar com a esposa, que não respondia. Ele havia ficado preocupado e decidiu ligar as luzes para examiná-la melhor. Foi então que teve a visão desgracenta.”
- Oh, não! - Ruth suspirava.
- Ela estava morta. - Sarah falava com um certo peso na voz - Ele checou seu pulso que já havia parado e ainda tentou desesperadamente acordá-la, mas nada fazia com que ela se mexesse. Pôs-se a chorar, com toda a certeza, afinal havia acabado de perder sua mulher durante a noite de núpcias.
“Provavelmente, então, foi quando William sofreu da má influência dos demônios. Ele observou a mulher completamente nua em sua cama, pálida, com os cabelos negros cobrindo os seios e uma assustadora expressão de morte no rosto, e havia percebido que havia gostado do que aconteceu. Acabou por não resistir à ácida tentação, ao desejo infernal, e a vontade de fornicação ressurgiu em sua alma.
“Ele não se importava se sua mulher havia morrido ou não, apenas que aquela era sua esposa, sua linda esposa, e ele a amava, então continuaria a amar mesmo após sua morte. E a amou o resto da madrugada, incansavelmente. A amou até que o sol despontasse no leste e invadisse o quarto do casal.
“Foi um dia estranho para William. Ele saiu de seu quarto e regou as rosas brancas sozinho. As flores haviam crescido ainda mais desde a manhã anterior. Almoçou em um restaurante espanhol cinco estrelas e soube que assistiu a um belo filme no cinema. Enquanto isso, sua falecida mulher descansava na cama de seu quarto, com a porta trancada, para que ninguém a visse.”
- Como ficou sabendo de toda esta história? - Anne estava curiosa.
Sarah apenas deu de ombros e continuou:
- Quando voltou ao hotel aquela noite, foi ao seu quarto e não conseguiu lutar contra o sentimento ardente que o consumia. Outra vez ele suava e gritava enquanto se dava conta de que realmente estava apreciando o ato de imundice que praticava.
- Como ficava o corpo? Não se degradava? - Mary questionou.
- Ah, sim, foi somente em sua terceira manhã na Espanha que William notou as diferenças. - Sarah conta - O cadáver parecia inchado e sua pele mais pálida que o normal. As camareiras perguntaram ao rapaz onde estava sua esposa, que não foi vista o dia inteiro e ele as disse que ela estava apenas cansada, mas que estava bem.
“Foi quando ele teve a brilhante ideia de vesti-la com suas roupas e levá-la para o jardim, carregando-a em seu colo. Ele colocou o defunto sentado no banco enquanto regava as rosas brancas, cujas pétalas agora se abriam e exalavam um doce perfume.
“Ele passou o dia com a mulher morta nos braços. Cogitou contar seu perecimento, mas não queria o que tinham acabasse tão rápido. Decidiu, então, apenas mais aquela noite contaminar sua alma de pecados. Mas não acabou naquela noite.
“William gostava do que estava fazendo e mantinha o corpo em sua cama. Saía todas as manhãs para regar as rosas brancas e quando a noite chegava, enlouquecia de prazer. Mais do que um hábito, aquilo se tornava fruto de um fetiche insano e ele não conseguia parar.”
- Quão pecaminoso. - Ruth julgava.
- Assim se passaram a quarta, quinta e sexta noite. As larvas já devoravam o cadáver de sua amada e o mau odor era insuportável, mas ele não se importava. As camareiras começaram a desconfiar. William nunca as deixava entrar para limpar o quarto e aquele cheiro já incomodava outros hóspedes.
“Na sétima manhã, enquanto o rapaz regava as rosas brancas que estavam completamente desenvolvidas agora, o dono do hotel estava decidido a entrar naquele quarto. As camareiras haviam lhe contado o que se passava e as reclamações graças ao odor só aumentavam. A passos pesados, o homem se dirigiu à porta e se lançou com força contra ela, até abri-la, quebrando seu trinco.
“Ao perceber a movimentação e os barulhos vindos do hotel, William correu de volta até lá, temeroso que descobrissem seu segredo sujo. Era, entretanto, tarde mais. O dono do hotel e as camareiras fitavam a mulher que estava repousando nos lençóis, se é que ainda podia ser chamada de mulher. Com o corpo perfurado por vermes, podre, em avançada putrefação, lá ela descansava.”
- Então ele foi preso? - Mary pergunta.
- Chamaram as autoridades logo após a descoberta, mas ele teve tempo de fugir, de voltar para cá e tentar se esconder. Mas assim que seu paradeiro não era mais um mistério, ele foi encarcerado. - Sarah explica - Sua mulher teve o enterro de respeito que merecia após ter a carne violentada daquela maneira.
- O espírito desta pobre garota estará sujo para sempre. - Ruth suspirava.
De repente, a conversa era interrompida por um barulho agudo vindo da cozinha.
- O chá está pronto! - Sarah exclamou, se retirando de sua sala num pique.
- Deveríamos marcar mais chás na casa da Sarah. - Ruth comentou - É um ambiente tão arejado e confortável.
- Concordo. - Mary disse. - Além disso, ela sempre faz biscoitos maravilhosos.
- E não tem um marido. - Ruth brincou - Todo esse casarão e ninguém para compartilhá-lo… Acha que ela deve ser triste?
- Acredito que não. - Mary respondeu - Ela tem dinheiro e quem tem dinheiro é sempre feliz.
- Por que está tão quieta, Anne? - Ruth a questiona - Quase não se pronunciou sobre esta história macabra.
De repente Sarah volta com a chaleira e uma generosa bandeja de biscoitos, que é colocada sobre a mesa. Cada uma das mulheres pega sua xícara e espera que a anfitriã a sirva.
- Vocês estavam falando sobre o filho da Abigail e fico um pouco receosa de comentar sobre isso. - Anne justificou.
- Por quê? - Sarah indagou enquanto derramava o chá nas xícaras.
- Vocês sabem, a Abigail tem dois filhos. - Anne falou - O mais novo é noivo da minha filha, a Elizabeth.
- Oh, eu havia me esquecido! - Ruth leva a mão ao peito.
- Ah, a linda Elizabeth! Cabelos cor de ouro realmente adoráveis. Perdoe-nos pela inconveniência, Anne. - Mary sorria, sem jeito.
- Eu e a Elizabeth já havíamos ido à casa de Abigail. - Anne conta - Conheci o William e, na época, sua noiva. Eram um casal realmente adorável. É uma pena que as coisas tenham acabado de tal maneira.
- Como ela morreu? - Ruth perguntou.
- Envenenada com a comida do hotel. - Anne respondeu.
- Você também sabia da história? - Mary indagou.
- A Elizabeth me contou algumas coisas. Não sabia como havia acabado, não sabia que ele havia sido preso. - Anne explicou.
- Mas como envenenada com a comida do hotel? - Ruth estava confusa.
- Ao que soube, uma das amantes do William viajou até Madrid no mesmo dia que o casal e subornou uma das camareiras para que envenenasse o prato da mulher. - Anne revelou.
- Viajou até Madrid por isso? Que exagero. - Sarah estava boquiaberta.
- Mas foi o que aconteceu. - Anne confirmou a história.
- Quem seria louca de fazer algo do tipo? - Ruth balançava a cabeça negativamente.
- Quem teria dinheiro para viajar a Madrid apenas por isso? - Mary lançava os questionamentos.
- Isso é algo que eu não sei. - Anne falou - Mas sei que ele tinha várias amantes. Uma vez eu havia sido convidada para um jantar na casa da Abigail, era uma terça-feira. Ela havia feito pratos deliciosos, devo admitir que é uma cozinheira de mão cheia. Se me lembro bem, aquele arroz estava temperado maravilhosamente bem, até pedi a receita.
“Após nossa refeição, comecei a conversar com ela sobre a relação entre nossos filhos. A conversa tomava rumos saudáveis até que fomos interrompidas por barulhos estranhos na madeira.”
- Como seriam esses barulhos? - Ruth perguntou.
- Não sei como dizer isso de outra de maneira, mas era como se a cama balançasse e sua cabeceira batesse na parede repetidas vezes. - Anne explicou - Sabem do que estou falando.
“Abigail subiu as escadas para conferir o que estava acontecendo e logo descobriu que o som vinha do quarto de William. Eu estava com ela, claro, ela não me deixou sozinha em sua sala de jantar. Ao bater à porta do quarto, William demorou de abrir. Estava mal vestido como se houvesse colocado as roupas às pressas.
“Não me julguem por ter olhado, mas foi inevitável que enquanto Abigail o repreendesse pelo barulho causado, eu olhasse para dentro do quarto do garoto. Em sua cama, pude ver uma mulher, tentando se esconder por baixo do cobertor curto que mal cobria suas pernas nuas. Percebi que era uma mulher mais velha que ele.”
- Ah, estes rapazes… - Mary revirava os olhos - Gostam de mulheres mais velhas apenas como amantes. Não as assumem!
- Eu perguntei a Abigail quando descemos sobre a noiva de William. - Anne continuou - E ela me disse que a moça estava doente, em casa repousando. Então soube que se tratava de uma amante.
“Abigail me pediu perdão pelo que presenciei e me contou que todas as noites uma mulher diferente passava pela cama do filho, uma para cada dia da semana. Que ele sempre as levava a bares e festas antes de caírem em seus lençóis.”
- Pobre esposa… - Ruth lamentou.
- Me intriga saber de onde o William tira tanto dinheiro. Estar sempre nas noites requer um certo poder aquisitivo. - Mary pensou - A família da Abigail não é tão rica.
- E quanto à da esposa? - Ruth sugeriu.
- A esposa do William vem de família pobre também. - Anne respondeu - Acredito que tire dinheiro de uma das amantes.
- Uma viagem de sete dias para Madrid não é barata mesmo. - Ruth concordou. - Principalmente se você se hospedar no hotel mais caro.
- De qualquer maneira, o rapaz não ficará preso por muito tempo. - Anne falou - Uma das amantes já está agilizando as papeladas e pagando a fiança para que ele seja liberado ainda amanhã.
- Qual das amantes? - Ruth perguntou, curiosa.
- Não sei. - Anne levantou os ombros como um gesto de dúvida.
- Meninas, estão gostando do chá? - Sarah pergunta de repente.
- Está delicioso, amiga. Você sempre faz os melhores chás. - Mary diz.
- Já que estamos falando de casos pecaminosos, conhecem o dentista da rua de baixo? - Ruth lança a semente da curiosidade.
- A Elizabeth se consulta com ele. - Anne fala.
- O Thomas também. - Ruth diz - Mas fiquei sabendo que ele estava tendo um caso escondido.
- Ele é casado? - Mary indaga.
- Não, mas é um absurdo suficiente para ser comparado a traição. - Ruth conta. - Comparado, não. É ainda pior!
- O que esse dentista faz, mulher? - Sarah a apressa - Agora já estou curiosa!
- Mantém relações afetivas com um outro homem. - Ruth revela.
- Outro homem? - Anne suspira, assustada.
- Tem certeza? Onde ouviu isso? - Mary pergunta.
- Ah, as notícias correm, vocês sabem… - Ruth conta. - O dentista nunca se casou pois não gosta de mulheres, simples assim.
- O homossexualismo é um vírus! - Anne dizia com repulsa - A Elizabeth nunca mais irá se consultar com ele! Imagina se for contaminada!
- Não seja tão preconceituosa, Anne. - Sarah a repreendeu. - Seja civilizada.
- Como ser civilizada com alguém que não me agrada? - Anne cruzou os braços. - A Elizabeth não irá se consultar com ele nunca mais e ponto final.
- Você não vê isso como um defeito, Sarah? - Mary questiona.
- Não concordo com as práticas, mas não creio que seja defeito. - Sarah se pronuncia. - Apenas um estilo de vida que ele escolheu para si.
- Partilho do mesmo pensamento. - Mary concorda.
- A Elizabeth já me contou que ele chegava com um sorriso enorme no consultório e uma cesta cheia de maçãs. - Anne bufou - Acreditei que estivesse noivando com alguma mulher, não com um homem! Quanta degeneração, quanto pecado…
- Não é para tanto. - Mary suspira - Ele apenas está feliz assim.
- Como consegue se solidarizar com uma sujeira destas? - Anne estava claramente irritada - Já se imaginou à cama com outra mulher em teus seios, Mary?
- Não sei do que você está falando, Anne. - Mary gaguejava.
- Já se imaginou aos beijos com uma linda virgem de cabelos dourados? É assim que você se satisfaz após a morte do seu marido? - Anne insistia.
- Podemos falar de alguma outra coisa? - Mary pede.
- Acham que está relacionado ao caso dos satanistas? - Ruth sugeriu.
- Que caso dos satanistas? - Sarah indagou.
- Não ficaram sabendo? Um grupo de satanistas anda sequestrando pessoas para rituais. Sempre existiram, mas estão aumentando o número de vítimas nos últimos dias. - Ruth contou - Eles fazem reuniões e acabam por oferecer a vida das pessoas em troca de regalias, geralmente financeiras.
- E o que tudo isso tem a ver com homossexuais? - Mary perguntou.
- Homossexuais são satanistas, todos sabem disso. - Ruth respondeu. - Não há outra razão pela qual você decide desviar o caminho da pureza natural para profanar seu corpo. Todos os homossexuais são satanistas.
- Nossa, olha a hora! - Anne gritou, de repente. - Preciso ir, já começa a escurecer.
- Vamos marcar um próximo encontro antes de partirmos. - Mary sugeriu.
- Estão livres no próximo sábado? - Ruth pergunta.
- Não estou. - Sarah responde.
- Amiga, quantos compromissos! - Mary diz - Já não basta o domingo anterior quando você esteve viajando? Está perdendo seus fins de semana.
- É, onde você estava mesmo, Sarah? - Anne questiona. - Para onde viajou?
- A negócios. - Sarah sorri.
- Então o que acham da terça-feira? - Ruth propõe. - O Thomas vai ao dentista toda terça. Minha casa está livre.
- Que coincidência! - Anne exclama - A Elizabeth vai ao dentista no mesmo dia.
- Estou ocupada todas as terças, lembram? - Sarah fala.
- Que agenda cheia… - Mary suspira.
- E o que acham da quarta-feira? - Anne dá a ideia - A Elizabeth nunca está em casa às quartas e a minha outra filha tem aulas de piano, estaremos livres.
- Eu me ocupo durante a quarta-feira. Receio que não posso. - Mary diz.
- Não se preocupem com a data, expirarão até ela, não importa qual seja. - E então Sarah se levanta e começa a recolher as xícaras das mulheres.
- O que você quer dizer, Sarah? - Ruth estava intrigada.
- Apenas uma correção: não somos satanistas. Nossa seita tem o seu próprio nome, a Ordem das Rosas Brancas. - E terminava de recolher as xícaras - Como estava o chá?
- Seita? Do que você está falando? - A voz de Mary parecia mais lenta. Após sua fala, a mulher encostou a cabeça na poltrona e adormeceu.
- O que tinha no chá? Que sensação estranha em meu estômago é essa? - Ruth se levantou e começou a andar em direção à porta.
- Eu tenho duas filhas! - Anne chorava.
- Não é veneno. Vocês apenas irão dormir, não morrer. - Sarah as tranquiliza. - As mortes acontecerão nesse sábado, como de costume. As congratulo por terem se tornado nossas novas oferendas.
- Oferendas? - E Ruth cai flácida no carpete, revirando os olhos e perdendo a consciência pouco antes.
- Sarah! - Anne gritava e soluçava. - Você é louca? Por quê? Por que a gente?
- Eu sou a fundadora da Ordem, eu escolho as vítimas. - Sarah responde.
- Não! - Anne deu seu último grito.
- Boa noite… - A voz de Sarah soava doce como mel.
Com a visão turva e a cabeça doendo, Anne sentiu o mundo girar e acabou por adormecer também.
Finalmente, após as incríveis leituras com obras ficcionais cheias de horror, Agatha Melina encerra o programa se despedindo do apresentador e divulgando mis uma vez o single Dirty Desire e o álbum Chaos.