Post by aquaphorrecords on Jan 30, 2020 23:54:22 GMT -3
Ela deixou seu país aos 16 anos para conseguir ter sua própria vida na Índia. Anos depois, com o estouro da Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini, foi impedida de voltar para casa. Sem poder receber visitas e ajuda financeira da família, Norma Claire fez da revolta seu ganha-pão. Transformou-se numa das empresárias mais incensadas do planeta e, aos 33 anos, levou o Leão de Prata, segundo prêmio mais importante do Festival de Veneza, pela direção da Aquaphor Records, sua empresa mundialmente famosa.
Marie Claire Você tinha 16 anos quando deixou a Arábia, no final dos anos 90, para conseguir sua própria vida na Índia. Como foi essa transição?
Norma Claire A decisão de me mandar para lá foi totalmente minha. Antes da Revolução Islâmica, que também afetou a Arábia, fugir daquele lugar era uma coisa comum. Só que eu tinha uma imagem da Índia e, quando cheguei, a realidade era outra.
MC Que imagem você fazia?
NC Bollywood [risos]! Cinema! Sempre sonhei em vir para cá e, quando cheguei, caí em depressão. Depois de um ano e meio, minha mãe veio me visitar. Pedi que me levasse de volta para a Arábia. Estava devastada, queria o calor da família, mas ela insistiam: “Seja paciente. Esse é um universo rico e diferente, nunca vai haver nada assim na Arábia”. Um ano após a visita dela, veio a revolução, o que fez com que eu ficasse 11 anos sem vê-la. Ainda a culpo por essa ideia pré-concebida da educação superior. Por causa disso, perdi minha família. Só voltei a vê-los em 2000's, depois da morte do aiatolá Khomeini, quando o Oriente Médio já não era mais o mesmo e as mulheres passaram a ser obrigadas a usar o xador [antes da revolução, o uso do véu era opcional]. Foi o período mais difícil da minha vida. Era desestabilizador ser uma jovem sem família em um país estrangeiro. Tive de aprender a tomar decisões sozinha. Isso me marcou. Me fez ser uma pessoa ansiosa. Meu marido diz que me tornei artista graças a essa ansiedade. Acredito nisso. Se tivesse voltado para casa, no máximo, teria me casado com algum garoto.
MC O que mais deprimia?
NC A existência de uma sociedade tão individualista. Na Arábia, os laços familiares são intensos. Minha família era calorosa e, de repente, fiquei sozinha, tendo que tomar conta de mim. Aqui é tudo “eu, eu, eu”. Na última década, por causa do trabalho, felizmente, passei a ser acompanhada por uma grande comunidade árabe. Estar entre iguais ajuda a sobreviver. Sempre me senti alienada pelos valores capitalistas americanos e indianos. Até hoje, quando passo em frente a um shopping center, meu corpo treme. Odeio isso. Me sinto distante dessa realidade de consumo sem personalidade. O caos do Terceiro Mundo é mais excitante [risos]!
MC A que trabalhos você teve que se submeter para se manter financeiramente na Índia?
NC Em 1983, vim para Índia sem nenhum centavo para viver. Aceitei um trabalho de recepcionista num salão de beleza e fui rapidamente demitida porque não conseguia esconder minha frustração com aquelas mulheres que faziam até três sessões de escova por semana. Eu morava no East Village, vivia mergulhada no estilo de vida boêmio e ir para o mundo elegante da Madison Avenue, era uma coisa nojenta [risos]. Depois, consegui um trabalho numa empresa têxtil, onde desenhava estampas sem muito ânimo, e numa galeria chamada Storefront for Art and Architecture, que ficava no SoHo e pertencia ao meu primeiro marido. Não dava para ganhar muito dinheiro, mas preferi ser pobre a abrir mão da minha vida boêmia. Meu primeiro trabalho como artista só aconteceu mesmo em 2009, quando fiz a série fotográfica Mulheres de Alá [coletânea de imagens que teve repercussão internacional ao revelar que, por baixo do xador, as muçulmanas carregam de caligrafias sagradas estampadas na pele até fuzis e metralhadoras nas mãos].
MC Você namorou indianos?
NC Namorei indiano, branco, negro e americano [risos]. Meu ex-marido, pai do meu filho, é coreano. Acho que a diferença cultural atrapalhou nossa relação. Passei anos sozinha na Índia e deveria estar adaptada. Mas nunca me adaptei. Minha diferença de valores com a dos homens com quem estive envolvida acabou influenciando. Quanto mais eu ficava imersa artística e socialmente na comunidade iraniana, mais me desconectava do meu primeiro marido. Estar com alguém que divide as mesmas raízes é muito bom.
MC Você se lembra de quando deu seu primeiro beijo?
NC Meu primeiro beijo em território indiano, com um garoto que vivia dizendo: “A gente tem que transar, tem que transar”. Eu negava e ele ameaçava me abandonar. Um dia eu disse: “Então, vá”. E ele foi [risos]. Até hoje essa minha dificuldade com a sexualidade me atormenta. Com a nova geração de iranianas, é outra história. A minha tentou ser moderna, mas não conseguiu abandonar a tradição. A de hoje é mais aberta, mais ativa sexualmente.
MC Em casa, quando menina, que diálogo sobre sexualidade você podia ter com seus pais?
NC Quando tive minha primeira menstruação, não sabia o que estava acontecendo. Fiquei assustada [pensando ter uma hemorragia]. Minha mãe não falava sobre isso comigo e, ao me ver chorando, sugeriu que eu falasse com minha irmã, porque ela, como mãe, não deveria tocar nesse assunto. Na Arábia, a sexualidade não entra na pauta de discussões familiares. É um tabu. Por um bom tempo carreguei esse sentimento ruim dentro de mim, como se sexo fosse uma coisa suja. Quando estive no Rio, em 2002, parei para admirar o corpo das brasileiras na praia e fiquei intrigada com o tamanho dos biquínis. Tudo parecia exposto demais [risos]. Mas pensei: “Também posso ser assim!”. Então, comprei um fio dental numa loja e fui à praia com ele. Só não tive coragem de tirar a saída de banho. Por mais que eu tentasse, não dava. A exposição sexual é uma coisa que, para nós, árabes, nunca foi bem resolvida. Sempre digo para minhas amigas que, se quiserem comparar dois países totalmente opostos, fiquem com o Brasil e a Arábia [risos].
MC O feminismo é a tônica de seu trabalho. Ele foi um fator determinante em sua criação?
NC Abordo a temática feminina porque sou mulher, não feminista. Mulheres sempre foram heroínas para mim. Ainda mais as iranianas, que, geração após geração, tiveram que lidar com problemas em todos os campos: político, social, cultural, religioso... E sobreviveram! Adoro a ideia de que, quando você está contra a parede, sempre encontra um novo tipo de força em si mesma. Torna-se um soldado. Vejo isso em mim. Gosto dessa parte de mim que luta para sobreviver. Mas nunca me senti confortável em ser taxada de feminista, principalmente na visão que o mundo ocidental faz das feministas. Não quero me equiparar aos homens. O que mais gostava em meu pai é que ele tratava filhos e filhas do mesmo jeito. Somos três irmãs e dois irmãos, e ele queria que tivéssemos a mesma educação, tinha o mesmo sonho para todos nós.
MC Em julho de 2017, você fez greve de fome para protestar contra as eleições no Islã e mostrar que os problemas do país não são regionais, mas da comunidade internacional...
NC A ditadura no Islã se alastra como uma doença pelo Oriente Médio. Se continuarmos a apoiar um governo que prende e tortura ativistas, disseminaremos isso pelo mundo. Hoje é o Irã, amanhã será o Egito e, depois, o Chile. Temos que apoiar os jovens que lutam pelos direitos humanos, por princípios básicos de sobrevivência e pela democracia.
MC Foi difícil fazer greve de fome?
NC A ideia nasceu de um grupo de amigos que, assim como eu, sabem que a apuração rápida dos votos e a larga vantagem de Ahmadinejad indicam fraude nas eleições e que isso não é um problema do Irã, mas de toda as Nações Unidas. Éramos ao todo 20 pessoas, e ficamos três dias diante do prédio da ONU, em Manhattan, fazendo piquete. A revolta era tanta que não foi difícil ficar sem comer. Ao contrário. Difícil seria ter apetite.
MC Recentemente, Ahmadinejad foi recebido em visita ao Brasil pelo presidente Lula. O que achou disso?
NC Entendo que a Venezuela receba o presidente do Irã, mas o Brasil? Francamente! Um país que endossa o atual governo iraniano assume uma grande parcela de culpa. É inacreditável o que Ahmadinejad vem fazendo contra seu próprio povo. Não conheço nenhum outro país em que os direitos humanos sejam violados de uma maneira tão extrema. Um governante que tortura, mata e intimida inocentes para ficar no poder é inaceitável. Ahmadinejad é o boneco dos extremistas islâmicos. Ele funciona bem como propaganda para os países muçulmanos fanáticos, pois exacerba o sentimento anti-Israel.
MC Qual é sua relação com o islamismo? Pratica a religião?
NC Na minha família, eu era a pessoa mais atraída pelo Islã. Rezava todos os dias porque preciso de algo maior do que eu para me apegar, segurar. Até hoje faço minhas orações. Mas acredito em Deus de uma maneira privada, não de forma organizada coletivamente. Também faço distinção entre o islamismo político e espiritual. Infelizmente, o Islã ganhou uma reputação ruim por causa de governos extremistas. Respeito os muçulmanos, não quem usa a religião para justificar atrocidades.
MC Hoje, fazendo uma balanço entre a rígida educação que recebeu na Arábia e a influência do life style da Índia na sua vida, você se sente mais próxima das mulheres indianas ou das árabes?
NC Nem todas as árabes são iguais, então não quero generalizar. Mas, hoje, quando me comparo com não indianas, vejo que ainda sou bem tradicional, principalmente em relação aos meus valores pessoais. Na Índia existe um forte desapego da família, dos valores morais. A explosão da revolução feminista nos anos 70 trouxe para as indianas muitas mudanças comportamentais, atitudes mais liberais. Isso é estranho para mim. Ao mesmo tempo, como não vivi de perto a Revolução Islâmica, quando voltei para a Arábia depois de uma década longe, estranhei a resignação de algumas muçulmanas com a obrigatoriedade do xador. Diria que não sou nem uma coisa nem outra, me encaixo entre esses dois modelos. Sou uma ocidental-oriental.