Post by aquaphorrecords on Mar 2, 2020 18:01:15 GMT -3
Diferente de muitas cantoras, ela nunca manteve um diário. A razão é simples: Norma tem certeza de que acabaria inventando tudo. A realidade logo iria virar música, e música da melhor qualidade, como a que ela produz há tanto tempo. Pelo mesmo motivo, nunca considerou a possibilidade de cantar uma música sobre suas memórias ou uma autobiografia, sob o risco de reinventar a própria vida com sabor de romance. Norma é reservada. Prefere expor suas emoções na voz dos personagens que encarna em suas canções -no que eles cantam e, principalmente, no que não cantam, marca registrada de seu estilo. Porque, para ela, o final importa menos do que o desenrolar da música, no mundo musical e na vida real. ''Do início até o último porto, só interessa a viagem: às vezes tem tempestade, ondas enormes cobrem o barco; depois vem a calmaria e podemos desfrutar de um horizonte claro. Mas se durante essa travessia a gente prosseguir desejando o bom, o belo e o verdadeiro, então tudo terá valido a pena.''
Vanity Fair A senhora é vaidosa?
Norma Claire Não me chame de senhora -''você'' é bem melhor! E sobre a vaidade, bom, eu faço o que posso [risos]. Certa vez eu disse para a Hilda que não queria mais pintar os cabelos, e ela respondeu: ''Você vai ficar triste''. Fiquei mesmo. Tenho minhas vaidades, sempre compro minhas roupas quando viajo. Mas não acredito em plástica, não gosto da ideia de as coisas mudarem de lugar. Felizmente tenho pele boa, então vou me aguentando: quando eu me tornar um ser tão horrível a ponto de fazer as crianças fugirem de perto, bom, aí eu me retiro.
Vanity Fair Mas tem muita gente que não pensa assim. O que você acha das mulheres que são capazes de fazer qualquer coisa para continuar em cena?
Norma Claire Há um limite para a vaidade. É triste ver algumas mulheres exagerando nas plásticas e no botox: tornam-se caricaturas de si mesmas. É, ao mesmo tempo, uma fuga e uma prisão.
Vanity Fair Como se o silicone fosse a versão moderna do espartilho...
Norma Claire Há uma relação entre ambos: o espartilho servia para transformar uma cintura larga na chamada cinturinha de vespa. Reduzir a cintura até quase faltar o ar era a preocupação do século passado. E agora, esse oposto, aumentar os seios até fazê-los transbordar pelo decote feito bolas de futebol -o exagero, a apelação sexual sem limites... Acho tudo isso muito triste, é a verdadeira servidão humana. Outro dia, vi uma mulher com a pele enegrecida de tantas tatuagens! Ainda bem que esse tipo de delírio não é muito comum, um delírio que chega a ser agressivo porque é deformação. Os homens andam até meio assustados, preferindo a solidão a esse apelo.
Vanity Fair Por que isso está acontecendo?
Norma Claire Talvez porque ainda seja cedo -ou difícil- para a mulher entender e usufruir dessa liberdade que conquistou. Como disse o extraordinário Norberto Bobbio [pensador italiano, morto em 2004], a revolução da mulher foi a mais importante do século 20. É isso: as transformações foram muito profundas. Aquela rainha do lar antes escondida entrou nas fábricas, nos escritórios, nas universidades, começou a participar ativamente da cultura, das letras e das artes. Um espanto! Mas, com relação ao próprio corpo, às vezes essa mulher age como se estivesse dando uma espécie de troco ao homem -''agora eu também posso!''. Acho ótimo que a mulher agora tenha liberdade de escolher a vocação, o companheiro. Mas prefiro que o comportamento não seja o de arrogância e desafio.
Vanity Fair Então tudo piorou?
Norma Claire Não, não estou lamentando a liberdade, o bem maior do ser humano e que a mulher conquistou nessa bela revolução. Acontece que as transformações foram rápidas demais e daí os exageros, o mau uso dessa liberdade, está me compreendendo? Na minha geração -a dos dinossauros [risos]- uma menina de 15 anos era mesmo uma menina. Hoje, uma garota dessa idade -algumas, é claro! - faz sexo, experimenta drogas e quer ser top model. Quando entrei no ensino médio não se pensava na mulher trabalhando em certas profissões. Tanto preconceito... Minha mãe vivia preocupada: ''Você já canta e produz, profissão de homem. E agora vai entrar para uma escola de homens? Tenho medo que você não se case'' [risos]. A sorte é que, de fato, eu era uma menina bem-comportada, isso ela reconhecia, vivia em volta dos livros. Depois inventei de fazer também o curso de esgrima e o de educação física, mas um dia ela confessou que gostava de pensar que eu também podia lutar com as espadas, como os mosqueteiros do romance.
Vanity Fair Você enfrentou muitos preconceitos?
Norma Claire Não posso me queixar. Casei duas vezes e o meu primeiro marido, Vicente Aquaphor [produtor], que também foi meu colega de faculdade e sócio na minha empresa, sempre me incentivou muito. Nunca houve nenhum machismo dos meus amigos, mas sim do mundo. Era duro entrar em uma sala de reuniões e eu ser a única mulher, usando um hijab. Na verdade, enfrento preconceitos até hoje, simplesmente por ter um pedaço de pano cobrindo minha cabeça. Parece bobo, mas as pessoas realmente não gostam de mim por esse pequeno detalhe. Uma das razões de eu não divulgar muito na América, e principalmente na TV, é este preconceito mascarado por sensacionalismo e perguntas tendenciosas que não só me ofendem, como também constrange. Não sou admiradora de televisão, devo admitir. Em base da minha divulgação pro meu single Torn, eu prefiro muito mais estar em revistas feito essa.
Vanity Fair Por quê?
Norma Claire Porque as pessoas já não são muito verdadeiras hoje em dia e é importante eu valorizar a minha saúde mental do que me render a crueldade do público e da televisão. Prefiro me sentir confortável, me sentir bem e passar essa sensação de confiança pros meus fãs. Não quero ser a frágil, e não vou me permitir isso.
Vanity Fair Você está no mundo dos bastidores há muitos anos. ''Aquaphor Records' consegue ser uma das gravadoras mais relevantes do mundo musical, e a premiada cantora Lazuli estava nessa panelinha junto com você.'’ Você ganhou dinheiro como produtora?
Norma Claire Ainda muito jovem eu já intuía que era melhor me garantir com um bom diploma -e acabei com dois!-, em vez de ficar contando com minhas produções. Durante 27 anos, fui gerente de várias grandes empresas e principalmente gravadoras. Acontece que estou no Terceiro Mundo e aqui é assim mesmo, analfabetismo, miséria. Tenho meu apartamento, até tenho meu carro, mas uso os táxis da minha rua e os motoristas até me chamam de ''senhorita'' [risos]. Não estou sozinha nessa luta, basta lembrar que tantos outros grandes produtores e cantores também lutavam -com a palavra e com a vida, um artigo de luxo. Plastique Condessa, naquele seu modesto apartamento, e também a querida Lazuli... Enfim, a música mais bela de todas não rende mesmo. Mas não perco a esperança, um cantor sem esperança é uma contradição. O meu pai, que era um empresário de primeira, arriscava no jogo, no baralho e na roleta. Era um jogador. Eu jogo na música. É uma luta dura, às vezes sem parceiros e sem testemunhas. Mas é a minha vocação.
Vanity Fair E os ouvintes? Além dos Estados Unidos, suas músicas e produções foram publicadas em muitos outros países...
Norma Claire É verdade. Mas quando somos meros produtores, quem nos conhece na Venezuela? No Chile? Estive em Cali, na Colômbia, participando de um encontro sobre música asiática. Fui convidada para falar da mulher na música árabe e acabei informando ao público a língua que falamos na Arábia. Tipo, sério? [risos].
Vanity Fair Você se sente injustiçada ou desiludida com essa realidade?
Norma Claire Não se trata disso, é só uma constatação. Meu país é a Arábia Saudita. Aliás, tem uma frase do Renato Russo [cantor e compositor, 1960- 1996] da qual gosto muito: ele dizia que o povo não é feliz. É alegre. Tudo é farra, carnaval, e os governantes infelizmente fecham os olhos para tantos problemas. No meu tempo de estudante, eu dizia que se a Arábia tivesse mais creches e escolas haveria menos hospitais e menos cadeias. Semelhante ao Brasil, não é? A frase continua valendo, e agora completo: também haveria menos drogas e menos violência. Nesse contexto não é fácil viver como produtora. E veja que ainda procuro seduzir o ouvinte, dourar a pílula. Mas também não vou apelar, como muitos, fazendo falsa militância disfarçada de música! [risos]. Eu meio que me tornei cantora por necessidade, entende?
Vanity Fair Acredita que a alma seja imortal?
Norma Claire Eu me considero uma espiritualista. Não sei como nem onde, mas acho que a alma permanece. Não posso acreditar que tudo o que somos simplesmente termine com o final da travessia. Sinto que, às vezes, os mortos vêm nos visitar. Acho que eles sentem saudades, como nós.
Vanity Fair Você acha que a música ajuda as pessoas?
Norma Claire O fã que ouve minha música não sabe, mas ele me ajuda, é um cúmplice, no melhor sentido da palavra. Quando estou produzindo, eu estendo uma ponte e digo ''venha''. De certa forma, eu me desembrulho para estender essa ponte, e o ouvinte, do outro lado, também se esforça e se desembrulha para aceitar o meu convite. Certa vez, eu estava falando numa universidade, dizendo justamente isso, que através da palavra, quem sabe, eu conseguisse tocar num ponto importante, ajudar de alguma forma, ou talvez tudo isso fosse apenas loucura. No final da apresentação, um jovem se aproximou e me deu um bilhete que dizia: ''Não é loucura, não, Norma Claire. Em muitos momentos, suas músicas aliviaram o meu desespero''. Então, não é sonho. A palavra consegue ajudar o meu próximo.
Vanity Fair Sempre se referem a você como uma mulher elegante, discreta -como lidou com a competição na vida e na carreira?
Norma Claire As mulheres em geral são mais competitivas. É aquela história do harém: ''O sultão ficou mais vezes comigo''. Um inferno! Mas eu, desde mocinha, nunca fui competitiva. E não por virtude, mas por natureza, até porque não tinha como competir a atenção dos meus pais com mais 20 irmãos. Até hoje, no mundo da música, o povo compete bastante, principalmente se tratando de charts. Ah, sim, tem gente que faz de tudo por uma boa posição. Lembro das aulas de esgrima da adolescência: usávamos uma túnica branca com uma calça tipo saiote, até o joelho, meias brancas, sapatos especiais, florete e máscara. No lado direito da túnica branca tinha um coração exposto, o alvo. O professor ordenava ''en guard'' e eu me punha em posição, mas não prestava atenção -vinha a adversária e acertava bem no meio do coração. ''Norma Claire!'', gritava o professor, ''olha o coração exposto''. O outro sempre tinha mais malícia e, pronto, quando eu via, o meu coração exposto já era [risos]. Mas isso não me fez falta. Talvez eu tenha amargado um pouco, me decepcionei com algumas pessoas, é natural. Mas, como não entrei na luta, não me feri realmente.
Vanity Fair Isso foi bom ou ruim?
Norma Claire Acho que não ser competitiva me ajudou muito, ajudou também a entender o meu sexo tão oprimido. Eu percebia a competição nelas, mas não devolvia. E quando você não retribui, não entra no jogo. Isso desarma o outro.
Vanity Fair A vida fica mais simples com a maturidade?
Norma Claire Acho que a vida se complica na velhice, quer dizer, na ''maturidade'': vamos atenuar as palavras! [risos]. Fica, sim, mais difícil, porque a gente vai perdendo as forças, embora a cabeça continue produtiva. O ser humano tem de fazer malabarismo o tempo todo, como um trapezista no circo: na juventude, a gente se atira, voa, não tem medo. Mas, na maturidade, sabemos que não tem rede lá embaixo e, se largar o trapézio, acabou, está perdido. Essa consciência amedronta e, ao mesmo tempo, estimula.
Vanity Fair Você não pensou em casar de novo?
Norma Claire Não quis outro casamento. Fiquei com meu ofício, minha vocação, meu filho, que amo muito, minhas sobrinhas lindas [Monalisa, de 16 anos, e Kalil, de 20 anos] e meus amigos.
Vanity Fair Você sempre sondou a solidão, a morte, os desencontros e a paixão em várias de suas entrevistas e produções. Desses temas, o que mais atiça a sua curiosidade?
Norma Claire É justamente o mistério que ronda tudo isso que eu, de certa forma, persigo. Einstein, que foi um pensador da ciência, disse que por trás da matéria sempre há algo de inexplicável -e essa foi a conclusão de um homem que procurava explicações. Para mim, esse inexplicável é a alma: quando produzo e escrevo minhas músicas, busco desvendar parte desse mistério através dos bichos e das pessoas -mortos e vivos.
Vanity Fair Do que você sente medo?
Norma Claire Da solidão, às vezes. Eu já li um miniconto [''Confissão'', no livro ''Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século''] que diz: ''- Fui me confessar ao mar.'' ''- O que ele disse?'' ''- Nada.'' Essa resposta do mar é propositadamente dúbia. Deixo ao leitor a escolha. Eu estava pensando na luta, em prosseguir nadando no meu belo estilo -eu nado bem. E o leitor? Bom, então, é isso: mergulhar a cabeça e respirar fundo, e mergulhar outra vez até cumprir a travessia.